Lavandaria Aire, no Bonfim, desde 1841.
Milhares de películas foram tratadas nesta casa. Epidermes flácidas, frágeis, mais ou menos reveladoras do seu conteúdo, no limiar entre o exterior e o interior. Quantas marcas de café, vinho, cerveja, molho de tomate e mostarda Savora foram extraídas? Taches propres, cicatrizes que transparecem desejos, gostos e desgostos. Quantos corpos cabem num tambor? Quantos passam numa máquina de secar? Quem não tem aquele par de calças que deixam de servir, que nos obriga a encolher?
O senhor Aire, conhecido pela sua dismetria, faleceu em 2008 e deixou um legado de máquinas de lavar e centrifugadoras automáticas em self-service. Sem o senhor Aire, peles misturam-se e cozem à mesma temperatura.
Entretanto, lá fui eu para mais uma lavagem. Entre 1000 e 1600 rotações por minuto, tecidos citadinos mascam-se num suco por onde outres passaram. Mas no fim de cada lavagem, falta sempre uma meia. Pares díspares. Absorvida, talvez tenha atravessado um buraco negro. Alguém a encontrará no outro lado do universo da meia paralela.
Desde então só visto meias no pé esquerdo. Para compensar a dismetria, caminho com o pé direito no passeio e o esquerdo na rua. Talvez o senhor Aire. Tudo, em todo lado, ao mesmo tempo. Como corpos e espaços mutáveis que habitaram, habitam e habitarão em simultâneo.